Segundo Sol: perdido no preconceito

Juliana Piesco
8 min readNov 10, 2018

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O final desconexo e desleixado da novela Segundo Sol foi só sintoma dos muitos problemas que o folhetim veio arrastando ao longo de seus seis meses.

Vou fugir das falhas na dramaturgia, na reciclagem de tramas ad nauseam para preencher o prolongamento desnecessário, e na conclusão da história, que não teve pé nem cabeça. Vou evitar tocar nesses assuntos, porque meu foco aqui é outro: vou me ater à perpetuação de situações problemáticas e estereótipos preconceituosos, desde o início da novela.

A Bahia dos brancos: crônica de uma morte anunciada

Os problemas de Segundo Sol começaram no anúncio do elenco principal e lançamento dos primeiros trailers.

Desde o início, o principal chamariz de Segundo Sol parecia ser passar-se na Bahia, principalmente em Salvador, fugindo do clássico eixo Rio-São Paulo que domina o horário nobre. Mas, apesar de se passar em Salvador — a capital com a maior população negra do país, e também é o município com maior porcentagem de negros do Brasil— o elenco principal da novela era esmagadoramente, irrefutavelmente, branco.

A quase ausência de negros do elenco global causou indignação nas redes sociais, e levou a uma notificação do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro, pedindo que a Globo assegurasse "a participação de atores e atrizes negras", e promovesse a "representação étnico-racial da sociedade brasileira, especialmente em cenários de população predominantemente negra".

A comoção não foi suficiente para trazer grandes mudanças. As personagens negras continuaram escassas (suficientes para contar na mão), e mesmo as poucas que ganharam espaço eram marcadas pelos estereótipos racistas: vimos da empregada doméstica que engravidou do patrão (Zefa), à esposa barraqueira (Doralice).

No núcleo principal da novela, havia apenas um personagem negro: Roberval, o filho do patrão com a empregada, renegado pelo racismo do pai. Machista, violento e frio ao extremo na execução de sua vingança, Roberval reforçava vários estereótipos sobre homens negros.

O retrato da personagem dessa forma, em si, não é um problema. Mas quando consideramos que ele é o único representante negro em um universo de brancos com nuances morais, éticas e de personalidade, fica evidente o perigo dessa representação.

Aqui, imagino que alguns de vocês estejam pensando que Roberval acabou alcançando a redenção, assim como sua mãe Zefa, que deixou de ser doméstica. Acontece que os arcos de ambos personagens existiu em função das questões raciais que eles enfrentaram. Ou seja, mais uma vez, vemos uma vasta variedade de personagens brancas que são retratadas de forma diversa, que são advogadas, arquitetas, arquitetas, cafetinas, bandidos, mocinhas, enganadas, têm doenças raras, dão golpes, e têm milhares de possibilidades de trama, enquanto as personagens negras são reféns das tramas em torno de racismo e preconceito. Esse aprisionamento de personagens em que a televisão insiste é limitador tanto para os atores, quanto prejudicam a representatividade das obras.

Um dos poucos personagens negro de uma novela em plena Bahia, um homem bem sucedido, podendo ser até uma representatividade decente e a globo faz uma dessas? O personagem do Roberval reforça o péssimo esteriótipo do negro violento, além de ser super machista.

Que umbanda é essa?

As religiões de matriz africana não foram poupadas do preconceito da novela. O primeiro indício de que havia um equívoco aconteceu no início da novela, quando Doralice (a mulher negra "barraqueira" mencionada anteriormente) ameaçou seu marido, que caso ele a traísse, ela "enviaria os orixás atrás dele".

Essa representação rasa e preconceituosa da umbanda foi de mal a pior. Após assassinar o próprio irmão, a principal vilã da novela, Laureta, apareceu fazendo uma oferenda aos orixás para agradecer pelo sucesso da maldade.

As religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, já sofrem de intolerância no Brasil, não sendo incomum a hostilização de seus praticantes e ataques a terreiros. Reforçar a incompreensão e demonização dessas religiões, nesse contexto, é no mínimo irresponsável.

A quase-cura gay

A discussão da homofobia é algo que há décadas as novelas vêm tentando colocar em pauta, com graus variados de sucesso.

Segundo Sol também apostou em um casal homossexual em meio à sua trama: logo no início da novela, conhecemos o par Maura e Selma, vizinhas que acabam se apaixonando e precisando enfrentar a sociedade para assumir sua relação publicamente. Um dos principais desafios era enfrentar o pai machista e conservador de Maura, Agenor.

Na primeira metade da novela, as duas já haviam assumido seu romance, e passaram a morar juntas. Foi aí que a duração excessiva e falta de história entrou em ação. Para "apimentar" essa trama, o autor resolveu criar um triângulo amoroso, fazendo Maura "cair na tentação" de se envolver com Ionan — homem e, ainda mais polêmico, doador do sêmen usado para o filho de Maura e Selma.

Pensando na questão da sexualidade da personagem, a trama foi extremamente confusa e mal escrita. Em nenhum momento a moça deu indícios de ser bissexual, inclusive demonstrando dificuldade de ter relações sexuais com Ionan, por não sentir atração por ele. Mas ao mesmo tempo, havia uma tensão no rompimento com Selma, a respeito de sua sexualidade. E se o beijo entre Maura e Selma foi censurado ao longo da novela, ela nunca hesitou em exibir amassos entre Maura e Ionan.

Para piorar, a ideia de "cura gay" assombrou o núcleo o tempo todo, o que incluiu a sua menção por outros personagens. Tanto o pai machista de Maura quanto um delegado conservador que trabalhava com ela afirmaram algumas vezes que Ionan "curou" a personagem de sua homossexualidade. Ainda que Maura tenha terminado a novela com Selma, simplesmente colocar essa possibilidade de uma "suposta cura" de forma tão leviana é impensável, principalmente se considerarmos as violências contra a população LGBT que são justificadas com base nessa falácia.

No desenrolar da história, Segundo Sol flertou com a ideia de uma relação poliamorosa entre as três personagens. Mas, ao final, Maura e Selma ficaram juntas, enquanto Ionan voltou com sua esposa (falaremos disso adiante). Ou seja: coube ao homem a decisão sobre a vida de duas mulheres lésbicas. A palavra final, novamente, foi do homem, que decidiu "sair de cena" e "autorizou" as duas a viverem sua relação.

Segundo Sol e as boas mulheres arrependidas

A partida de Ionan, inclusive, foi que conduziu a uma das cenas mais sofríveis do último episódio de Segundo Sol: seu retorno para casa, e a conversa com sua ex-esposa, Doralice.

Aqui, vale um pouco de contextualização. Ionan realizou doação de esperma escondido da esposa, traiu-a diversas vezes, fez gaslighting com ela, a convencendo de que a traição era culpa de seus ciúmes e "loucura", deixou a esposa e filhos pequenos para viver uma relação com Maura, e depois viu-se no direito de sentir ciúmes quando, meses depois, Doralice iniciou um relacionamento com outro homem. Foi esse ciúmes do novo namorado, inclusive, que motivou Ionan a desistir do relacionamento poliamoroso com Maura e Selma.

No capítulo final, Ionan volta à sua antiga casa com Doralice, no que poderia parecer uma cena de pedido de perdão. Mas o que se seguiu foi a fantasia de todo machista: Doralice, que foi traída e abandonada, reconhece que a "culpa" de tudo que deu errado na relação foi dela, que ela causou os problemas por seus "ciúmes doentios". Depois ela diz que seu novo namorado (aquele de quem Ionan se viu no direito de sentir ciúmes) na verdade foi principalmente um "amigo" que ajudou-a a se tornar uma mulher "melhor", e que agora ela estava preparada para receber de volta seu marido e único amor.

O caso de Doralice e Ionan não era um caso isolado, em uma novela em que o estereótipo da mulher arrependida e/ou compreensiva era um dos mais repetidos. Cacau, agredida e humilhada no altar por Roberval (que foi sim traído, mas não justifica a atitude machista) se descobre apaixonada, e aceita a "culpa" (imposta a ela por Roberval em conversa no último episódio) pelo fracasso da relação dos dois. A ex-empregada Zefa, mesmo em sua versão "empoderada", explica ao filho que entende as traições cotidianas de seu companheiro (e ex-patrão) Severo, já que foi "assim que ele sempre aprendeu, a ter uma mulher em casa e outras na rua".

Um desserviço ainda maior às mulheres surgiu na forma de um estereótipo ainda mais tóxico: o do homem vítima de um falso-estupro. Na trama, Rochelle rasga as próprias roupas e chora, fingindo ser vítima de tentativa de estupro por Roberval. Isso foi feito como vingança, para "acabar com a vida dele".

Para entender a gravidade desse uso leviano do tema, temos que considerar a dupla violência a que são submetidas as vítimas de estupro no Brasil: primeiro a violência sexual em si, e depois a negação ou menosprezo pelas denúncias da vítima, que muitas vezes partem inclusive das autoridades. Em uma sociedade em que vítimas de estupro precisam batalhar para ter sua situação reconhecida e levada a sério, é absurdo mostrar em horário nobre uma vilã "usando" desse recurso para se vingar de alguém.

Mas é só uma novela!

Eu imagino que muitos dos estereótipos que citei ao longo desse texto devem ser recorrentes em novelas, e sei que muitos deles são "emprestados" de outras obras do mesmo autor, João Emanuel Carneiro. Porém isso não pode nem deve ser usado de justificativa — inclusive, se algo, aprofunda o problema.

Isso acontece porque existe um ciclo de representação entre as novelas e sociedade brasileira. É uma troca mútua de arte-imita-vida, enquanto a vida-imita-a-arte.

Desde os anos 70, a maior parte da teledramaturgia brasileira pauta-se na noção de cotidiano, ou seja, ela se pretende uma representação da realidade. Mas não se trata de uma realidade totalmente fiel, já que a novela precisa atrair e entreter os espectadores e cumprir sua tarefa comercial, de vender produtos, tanto nos seus intervalos quanto em cena (como esquecer que as Casas Bahias venderam as casas das personagens de Segundo Sol?). Essas necessidades criam distorções na realidade, um certo exagero em alguns dos dramas apresentados, e claro, a romantização de algumas questões.

Por outro lado, a sociedade também se espelha na novela, uma vez que a novela se mostra como um parâmetro para o cotidiano. Esse é um dos motivos que as novelas têm um impacto tão profundo na sociedade, podendo influenciar comportamentos (de lançar uma moda de vestuário a conscientizar a população sobre uma doença). Assim, se por um lado uma novela pode ajudar a diminuir a intolerância frente a alguns grupos, também pode aumentar preconceitos ou naturalizar/romantizar comportamentos abusivos ou opressores. E, nesse sentido, Segundo Sol foi um passo para trás.

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