"Os outros": como uma série excelente se perdeu no caminho
A série, que já alcançou o posto de mais assistida da história da Globoplay, é excelente. Até não ser.
Uma briga entre adolescentes na quadra de futebol do condomínio é o ponto de partida da série “Os Outros”, cuja primeira temporada foi exibida pela Globoplay entre junho e julho de 2023.
A partir daí, o piloto impecável da série mergulha em toda a tensão acumulada, frustração e contradições da classe média brasileira. Se no início dos anos 2000 havia uma sensação de que finalmente estava chegando o “futuro” para o Brasil, o país do futuro, hoje colhemos toda a frustração desse sonho. Essa sensação se traduz perfeitamente no condomínio de prédios que inicialmente é apresentado como uma utopia — com suas quadras de tênis, piscina, quadra de futebol, salões de festa e “segurança” — e ao longo dos episódios prova-se um ambiente tenso e claustrofóbico.
A inspiração citada com mais frequência pelo criador Lucas Paraizo é “Parasita” (2019), mas “Os Outros” remete muito mais a “Relatos Selvagens” (2014) e “Deus da Carnificina” (2011). A violência nasce e escala a partir de situações triviais, e o nos fascina e nos apavora é que mesmo quando a situação parece absolutamente absurda, ela não é implausível.
Isso porque conseguimos acompanhar a complexa teia de motivações por trás de cada ação. Cada personagem traz a campo seus medos, tédio, vaidades, frustrações, preconceitos, valores e sua maneira específica de se comunicar e de existir no mundo, e essa multiplicação de fatores torna os conflitos cada vez mais insolúveis. As nuances dessas figuras é acentuado pelo excelente trabalho do elenco principal, e o resultado é que não há vilões nem heróis, apenas um grupo de pessoas que carregam em si todas contradições de serem humanos.
Isso é… até mais ou menos o sétimo episódio. A partir daí, a série se dobra ao maniqueísmo e não volta mais. É estabelecido um vilão — o miliciano Sérgio (Eduardo Sterblitch) — e, a partir desse ponto, todas as outras personagens precisam se unir para derrotar o “grande mal”. E todos os conflitos anteriores, tecidos de forma tão sofisticada, parecem se dissolver sem maiores explicações diante dessa necessidade. De forma preguiçosa, a série abandona uma história descentralizada e cheia de subtextos e entra na linha de produção das narrativas "o bem contra o mal".
Outro que incomoda bastante é o arco fantasioso do adolescente Marcinho (Antônio Haddad), que vai de garoto pêra-com-leite a funkeiro fluente do dia pra noite. Queria entender que poderes existem no beijo de Lorraine (Gi Fernandes) que faz um menino de condomínio retraído subitamente ter a autoconfiança de participar de uma competição de passinho em um baile funk (e, ainda mais estranho, isso ser aceito sem questionamentos pelos próprios frequentadores do baile). A transformação apressada de Marcinho contrasta muito com a trajetória delicada de seu rival, Rogério (Paulo Mendes).
O resultado de tudo isso são episódios finais recheados de clichês para prender o espectador, culminando em um episódio final desastroso, que parece mais preocupado em convencer a audiência da necessidade de uma segunda temporada do que em encerrar a primeira.
O que é uma pena, porque se a série tivesse mantido a proposta e ritmo de seus primeiros episódios, não precisaria recorrer a fórmulas para segurar o público. Ele mesmo voltaria, querendo mais.