Hora de devolver os artefatos roubados? — Museus e a questão da repatriação
No dia 12 de junho de 2023, o rei do povo Bamum, sultão Ibrahim Njoya, ficou frente a frente com o trono de seu bisavô. Era o Mandu Yenu, levado pelos alemães em 1908, no contexto da exploração colonial. O rei não teve dúvidas: diante de uma entourage de alemães emudecidos, sentou-se no trono que deveria ser seu.
Não foi um ato de impulso. Desde que assumiu o trono, em 2021, o jovem rei fala da repatriação do Mandu Yenu. Em entrevista à National Geographic alguns meses antes, ele disse não ter qualquer ressentimento em relação aos alemães. “Nenhum de nós éramos vivos naquele tempo — nenhum de nós. Mas acho que temos que resolver esse problema.”
O debate sobre a repatriação de artefatos extraídos de seus países no período colonial não é novo. Pelo menos desde os anos 70 existem conversas a respeito no meio museológico. Mas é inegável que nos últimos anos a pressão internacional nesse sentido tem se intensificado, e ganhado importantes defensores — mesmo nos países europeus que antes recusavam-se a aceitar a possibilidade.
Em 2017, o presidente francês Emmanuel Macron se colocou a favor da repatriação, em um surpreendente discurso feito em Burkina Fasso. Além de reconhecer os crimes franceses praticados em suas colônias, destacou a importância de devolver os artefatos levados: “A herança africana não pode mais ser prisioneira nos museus europeus”.
Essa postura é a aceitação tardia daquilo que estudiosos e filósofos da África, Ásia, Oceania e povos originários do continente Americano já expressam a décadas. Só que, infelizmente, há pouco que esses podem fazer para obrigar a devolução dos materiais saqueados, e somente agora, com a adesão de alguns líderes europeus, começa-se a ver uma movimentação real nesse sentido. Em 2022, o Parlamento Francês autorizou a devolução de 26 obras ao Benim; o Metropolitan Museum of Art, nos EUA, aceitou restituir uma dúzia de esculturas à Grécia; e Alemanha levou à Nigéria centenas de artefatos.
Mas esse processo ainda está engatinhando, e a passos muito mais lentos que deveria. Talvez o maior símbolo de resistência ao movimento de repatriação dessas peças seja o Museu Britânico, cuja exposição permanente abriga algumas das peças mais cercadas de controvérsia do mundo, e que sistematicamente ignora pedidos para suas devoluções.
Coleções sangrentas
Muito da controvérsia cercando esses objetos está na forma como foram obtidos: por saques, extorsões, remoções silenciosas e não-autorizadas, ou até mesmo em massacres planejados mirando nesses artefatos. As porcelanas do Antigo Palácio de Verão, na China, foram saqueadas por soldados britânicos que queimavam a construção e promoviam a chacina de centenas de chineses. Esculturas e frisos do Parthenon, na Grécia, foram removidos a mando de um lorde britânico que planejava usá-los para decorar sua residência e agora estão — adivinhe — no Museu Britânico.
Talvez o caso mais simbólico seja dos Bronzes de Benim, um conjunto imenso de peças em bronze, latão, cerâmica, madeira e marfim que foram roubados do palácio da Cidade de Benim em 1897. Na ocasião, os colonizadores britânicos promoveram um massacre, formalmente em retaliação à morte de alguns compatriotas, mas com o objetivo de acessar as riquezas da cidade, uma das mais efervescentes da África. Nas fotos, os próprios ingleses escreveram a palavra " saque" sob imagens de soldados triunfantes diante de pilhas e mais pilhas de artefatos africanos.
Ocorre que as mais de 5000 peças saqueadas pelos britânicos não eram apenas obras decorativas. Elas tinham importante função cultural e histórica, servindo como registro de toda história do reino de Benim, situado na atual Nigéria. “O que os britânicos levaram foi um tesouro que estava no palácio há séculos”, explica Theophilus Umogbai, diretor do Museu Nacional da Cidade de Benim. “Eles criaram um vácuo na nossa história, uma lacuna nos nossos registros.”
Por esse exemplo, fica evidente uma das funções mais importante da repatriação de obras: o resgate da identidade e da ancestralidade desses povos. O sequestro desses objetos representa uma continuidade do processo de exploração e violência colonial. Para piorar, além de suas funções identitárias, simbólicas e culturais, muitas dessas peças também têm uma dimensão espiritual, totalmente ignorada pelos colonizadores.
Podemos citar o exemplo notório do Hoa Hakananai’a, uma estátua moai que foi levada pelos britânicos da Ilha de Páscoa, e atualmente está em exibição no British Museum. Para o povo rapanui, a estátua contém a alma de um antepassado e deveria estar na ilha velando pelos seus. Apesar de extensas tentativas de repatriar esse moai, incluindo a oferta de criar uma réplica exata para substituí-lo no museu (de modo a devolver a alma do antepassado a seu devido local), os rapanui não conseguiram negociar seu retorno. Curiosamente, o site do British Museum cita o pedido de repatriação da obra, mas desconversa o desfecho, limitando-se a declarar que “reconhece o impacto da remoção [da estátua] da ilha em 1868.”
Narrativa ultrapassada
Diante do crescente número de pedidos de repatriação de artefatos, defensores da sua permanência em grandes museus etnográficos da Europa e dos EUA recorrem a uma série de argumentos. Os mais racionais recaem em uma de três categorias.
Conservação e segurança
Um dos mais recorrentes é a ideia de que as peças seriam melhor preservadas ou estariam mais seguras nos países colonizadores.
Primeiro, é importante identificar o quanto esse argumento é sustentado por uma visão de mundo colonial, que coloca alguns países em uma posição de superioridade ao concluir que lidariam melhor com o patrimônio cultural, mesmo se comparados aos locais e cultura de origem desse mesmo patrimônio. Ademais, basta uma rápida pesquisa para comprovar a quantidade de roubos e danos a patrimônios culturais que ocorreu nesses países nas últimas décadas, de obras de arte danificadas por chuvas no Louvre em 2017 ao terrível incêndio na Catedral de Notre Dame, de 2020.
Resta lembrarmos, ademais, que a maioria desses artefatos sobreviveu a séculos ou até mesmo milênios em seus locais de origem, sendo danificados (e muitos, que não chegaram a nós, destruídos) durante os saques e conflitos no período colonial, ou assim que os europeus tiveram acesso a eles. Centenas de múmias egípcias, que além de seu valor histórico inestimável são restos mortais de outros seres humanos, foram destruídas no período vitoriano para fazer tinta, animar festas com a atividade de "desenrolar" a múmia, ou para serem comidas como suplementos (diante da crença que pó de múmia garantiria longevidade, popular na época).
Além disso, a hipocrisia desse argumento já se comprovou na prática, em mais de uma situação na qual o país que solicitou o repatriamento comprovou ter plenas condições, se não melhores, de acomodar e manteros itens reivindicados. Basta citar o exemplo do moderno Museu da Acrópole, construído em 2009 na Grécia, com um ambiente específico para receber as peças do Parthenon que estão atualmente no Museu Britânico, que todavia não foram devolvidos. Outro exemplo foi o museu construído pelo pai do sultão Njoya — aquele mesmo, que sentou no trono na Alemanha — , uma suntuosa instalação em Foumban, em Camarões, para receber artefato que até o momento não foram repatriados.
Acesso
Um segundo argumento, esse ainda mais falho, é que a exposição dessas peças em museus de cidades cosmopolitas supostamente permitiria a democratização do acesso a elas, contribuindo para a educação de novas gerações.
Aqui, se torna inevitável a pergunta: acesso de quem? É cruel usar o acesso como argumento para criar uma situação que impede a maioria das pessoas dos países de origem a verem as obras que fazem parte da sua própria ancestralidade. Aqui, é privilegiado o acesso de pessoas que residem nos países colonizadores, novamente recorrendo a uma lógica de superioridade e prioridade sobre os colonizados.
Também é bobagem acreditar que a vasta maioria dessas obras esteja ao alcance do público. Tomando a Alemanha como exemplo, segundo dados divulgados pelo próprio governo, há cerca de 1,5 milhões de obras de origem contestável espalhados pelos museus e coleções do país, sendo que menos de 5% foram expostos para o público. Boa parte está guardada em depósitos, e não há regulamentação específica de como devem ser acomodadas.
Finalmente, quando falamos de educação e acesso, existe ainda uma questão mais simbólica: o contexto. Quando exibidas em museus estrangeiros, essas obras são frequentemente mostradas ao público sob um olhar de exotificação, reforçando estereótipos negativos. Mesmo que haja uma contextualização mais apropriada, o subtração de seu local de origem já corrobora com a narrativa colonial de superioridade e exploração.
Não vai sobrar nada
Um dos últimos argumentos, e talvez o mais transparente, é a crença de que a repatriação possa afetar negativamente os acervos de alguns dos principais museus etnológicos do mundo. Essa preocupação, por si só, já reflete a quantidade assustadora de obras que são oriundas da violência da colonização. E é inegável que esse movimento provavelmente irá afetar profundamente as coleções desses museus.
Temos que lembrar, porém, que os museus não são espaços estáticos, mas em constante transformação. Eles devem refletir as questões e os valores das pessoas de seu tempo. Se no passado era considerado normal, na Europa, a existência dos "zoológicos humanos", nos quais seres humanos de etnias distintas eram exibidos como "curiosidades etnológicas", hoje isso é inaceitável e a prática foi erradicada. Da mesma forma, é possível que no futuro não seja normalizada a existência de acervos formados pelos massacres, saques e roubos.
Superar os horrores do passado colonial não é algo que se faz na teoria. É urgente partir para a prática e romper com os ciclos de violência iniciados lá atrás. A pergunta que está diante de nós é: preferimos que existam museus de acervo vasto, porém sangrento? Ou nossa preferência é por museus cujos acervos e práticas são éticos e alinhados com um projeto de mundo mais justo? Felizmente, parece que cada vez mais pessoas preferem a segunda opção.